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Espiritismo é uma religião?
A verdade é que existem espíritas com uma resposta positiva a esta questão e outros com resposta negativa.
Já ouvi opiniões bem fundamentadas nos dois sentidos, mas claro, para mim a resposta é clara num dos sentidos (direi qual no fim do texto), no entanto tentarei ser o mais isento possível na análise a este tema.
A arqueologia encontra artefactos ligados a uma aparente religiosidade desde a mais remota antiguidade, parece que a espécie humana sempre teve a necessidade de sentir esse conforto, acreditar em seres superiores, atribuir uma explicação para o que não entendiam, enfim, um sentido para vida.
O que nos artefactos pré-históricos aparenta ser religioso, torna-se certeza a partir do momento em que surgiu a escrita, pois esses registos não deixam qualquer margem de dúvida sobre diversas organizações religiosas antigas.
Com a evolução do ser humano ao longo dos séculos e independentemente do que professam, as religiões acompanham-nos até aos dias de hoje.
Apesar das diferentes ideias que cada religião defende, uma coisa existe em comum entre todas: está intrínseco a presença de uma fé cega, assim, ou aquilo faz lógica para a pessoa e ela acredita, ou não faz lógica nenhuma e não acredita, mas qualquer uma delas sem hipótese de validação através da investigação.
Exemplo: numa religião que defenda o céu para quem se portou bem e o inferno para quem se portou mal, os crentes dessa religião acreditam, mas não têm forma de validar se é mesmo assim ou não.
Com o espiritismo não é assim.
Allan Kardec e a obra básica que compilou, baseou-se na observação, na investigação, na validação dos resultados obtidos, chegando ao ponto de seguir-se (e muito bem) a sugestão do espírito Erasto:
Vale mais rejeitar dez verdades do que admitir uma só mentira, uma só falsa teoria.
Fonte: O Livro dos Médiuns - Capítulo XX - Influência moral do médium, ponto 230. Tradução para português de Portugal / 2018 - José da Costa Brites e Maria da Conceição Brites
Perante o que expliquei acima, um espírita não deverá ser espírita só porque sim, ou porque aquilo que leu ou ouviu falar lhe fez sentido, não!
Fé cega é incompatível com o espiritismo.
Para além dessa diferença, no espiritismo também não existem cultos, rituais, hierarquia, templos, etc.
Mas possivelmente mais importante e para um correcto raciocínio sobre a questão que dá título a este texto, irei abordar três momentos que farão por certo o(a) leitor(a) pensar pela sua cabeça e chegar à sua própria conclusão.
O primeiro deles tem a ver com o Brasil.
Quando o espiritismo chegou ao Brasil teve de imediato uma grande aceitação, o que não é de estranhar numa sociedade tão aberta.
No entanto e sobretudo nas primeiras décadas de espiritismo no Brasil, foi grande o desconforto (para não dizer pior) que os espíritas brasileiros tiveram numa primeira fase com a Igreja Católica e mais tarde com a Psiquiatria, os primeiros perseguiram os espíritas acusando-os de serem demoníacos, os segundos de serem doentes mentais.
Nessa época de grande agitação nos alicerces espíritas daquele país, os próprios espíritas não se entendiam, existindo espíritas que defendiam a vertente científica do espiritismo, outros defendiam a vertente filosófica e surgiram também os que defendiam uma vertente religiosa.
A juntar a esta grande confusão, os roustainguistas (abordarei este tema mais profundamente num outro texto) foram florescendo em inúmeros grupos espíritas, em 1908 numa reunião da Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro manifestou-se uma entidade que fundou uma nova religião (a Umbanda)... e enfim, já deu para ver a confusão, certo?
Sem querer apontar qualquer crítica ao movimento espírita brasileiro, a verdade é que uma vertente religiosa cresceu nas suas fileiras ao ponto de se adulterarem ideias escritas por Allan Kardec em pontos aparentemente sem importância, como por exemplo este pequeno parágrafo na introdução do livro O que é o Espiritismo:
O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações.
Fonte: O que é o Espiritismo - Preâmbulo. Tradução da Redacção do Reformador em 1884.
Ora, de uma ciência filosófica de consequência morais, para uma ciência filosófica de consequências religiosas foi um passo curtinho, mas de consequências gigantescas, é aliás muito comum encontrar sites espíritas com a frase "Ciência, Filosofia e Religião" em destaque.
Sem qualquer sombra de dúvida o Brasil teve (e tem) um contributo positivo de valor inestimável na divulgação espírita, no entanto a vertente religiosa tornou-se de tal forma vincada num país com tantos espíritas que se tornou praticamente uma verdade absoluta.
Outro momento com bastante significado na análise se o espiritismo é ou não religião ocorreu no Congresso Espírita Internacional de 1925, onde se pretendeu retirar aspecto religioso do espiritismo mas Léon Denis (grande pensador, filósofo e divulgador espírita) foi contra.
Com um trabalho gigantesco e de muita qualidade, Léon Dénis apresentou os seus argumentos contribuindo também para o que descrevi nos parágrafos anteriores.
Por último, gostaria de apresentar as palavras do próprio Allan Kardec num discurso proferido na Sessão Anual Comemorativa do dia dos Mortos, na Sociedade de Paris, no dia 1 de Novembro de 1868 (poderão encontrar o discurso na integra na revista espírita de Dezembro de 1868).
Em determinado momento do discurso Allan Kardec afirma:
O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objectivo, é, pois, essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito.Se o leitor parar por aqui, ficará por certo convencido que espiritismo é mesmo uma religião, no entanto o discurso continua:
O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas.
É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião
da família.
Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.
Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimónias e de privilégios; não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou.
Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.
E para não existirem dúvidas complementa:
As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de que se ocupa; pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que, por isto, sejam tomadas por assembleias religiosas. Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuance é perfeitamente clara, e a aparente confusão não provém senão da falta de uma palavra para cada ideia.Penso ser claro porque na minha opinião o espiritismo não é uma religião, mas para além da minha opinião e do que podemos ler e pensar, existe também a posição do espiritismo perante a sociedade em geral.
Explico-me:
É certo que o espiritismo não tem como objectivo fazer adeptos, no entanto também será bom que não afaste as pessoas, neste caso em concreto refiro-me principalmente às pessoas da área de investigação, os pensadores contemporâneos, os filósofos, etc. não com o objectivo que se convertam, mas sim que estudem e pensem sobre o tema.
Assim, e enquanto não afastarmos o folclore místico presente em tantos grupos espíritas, não seremos reconhecidos de outra forma que não seja essa mesma... folclore, místicos, os que acreditam naquelas coisas...
Estudos independentes realizados por espíritas e não espíritas ao longo dos anos apontam para evidências muito fortes na continuação da vida após a vida, já será tempo de passarmos à prática da recolha, catalogação e divulgação de dados de forma consistente.
Sobre esses temas (investigações, investigadores e divulgação de dados), iniciarei um conjunto de artigos em breve.
Gostei muito da abordagem do tema. imparcialidade está presente.
ResponderEliminarObrigado 🙂
EliminarMuito esclarecedor. Eu, pessoalmente, acho que muitos espiritas se comportam como religiosos. Que se sentem atacados quando alguém coloca algo em questão na doutrina, em vez de argumentar. A postura não religiosa é: não existem verdades absolutas e definitivas. A grau de certeza das informações não depende de quem informa mas da testagem das informações de forma o mais rigorosa possivel por pessoas independentes. À escala planetária, e ao longo do tempo, não me parece que a doutrina espirita seja suficientemente confirmada. E que parte de alguns dogmas. No meio espirita sinto que existem espiritos, encarnados e desencarnados, considerados infaliveis, acima da possibilidade de erro (idolatração). Enfim, parece-me que o movimento espirita, e as pessoas que se dizem espiritas, em geral, tem um comportamento religioso
ResponderEliminarOlá Vitor,
EliminarDe facto não existem verdades absolutas e o próprio Allan Kardec com a sua inteligência e integridade, recomendou que se um dia a ciência com a sua evolução vier a contradizer algum dos pontos do Espiritismo, que os espíritas abandonem esse ponto e sigam a ciência.
Acho que é um trabalho que depende de todos nós e ainda existe muito para fazer aí...
Por exemplo: são raros os grupos espíritas que catalogam, investigam e deixam para memória futura os casos que ocorrem nas suas reuniões mediúnicas.
É pena.
Também me é difícil, após uma qualquer busca realizada na Internet observar a quantidade de disparates que se encontram sobre o Espiritismo, patetices escritas como se fossem verdades absolutas, sem verificação, validação, nada.
Mais uma vez, é pena.
No entanto, reforço: é o trabalho de todos nós tentar divulgar o Espiritismo sem esse folclore.
Abraço.