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Recordo-me bem do momento em que ainda jovem vi pela primeira vez o título deste artigo de Allan Kardec, presente na Revista Espírita de Janeiro de 1866.
O primeiro pensamento foi um julgamento precipitado e nada abonatório, onde os alicerces da minha imensa admiração pelo raciocínio ímpar, cristalino e de numa lógica sem paralelo, construídos lentamente no meu íntimo sobre Allan Kardec eram abalados com um único título.
Obviamente ao ler o artigo dei conta não só do meu engano e vergonhoso julgamento, mas também da actualidade do tema.
“As mulheres têm alma? Sabe-se que a coisa nem sempre foi tida por certa, pois, ao que se diz, foi posta em deliberação num concílio. A negação ainda é um princípio de fé em certos povos. Sabe-se a que grau de aviltamento essa crença as reduziu na maior parte dos países do Oriente. Embora hoje, nos povos civilizados, a questão esteja resolvida em seu favor, o preconceito de sua inferioridade moral perpetuou-se a tal ponto que um escritor do século passado, cujo nome não nos vem à memória, assim definia a mulher: “Instrumento de prazer do homem”, definição mais muçulmana que cristã. Desse preconceito nasceu a sua inferioridade legal, ainda não apagada de nossos códigos. Durante muito tempo elas aceitaram essa submissão como uma coisa natural, tão poderosa é a força do hábito.” (Kardec 1866/ 2009, 13).
Passados todos estes anos desde que o referido artigo de Allan Kardec foi escrito, a mulher já é reconhecida legalmente como igual ao homem, no entanto, na prática verifica-se ainda não ser bem assim.
Felizmente já não é notícia a formação académica de uma mulher, nem os cargos de destaque alcançados meritoriamente em tantas instituições públicas e privadas, um pouco por todo o lado (no entanto ainda longe de ser uma realidade em todo o planeta), mas a verdade é que a questão resolvida pelo Espiritismo, demonstrando por inúmeras observações que os espíritos não têm sexo*, está longe de ser vivida em pleno.
Renascemos umas vezes no corpo de homem, outras no corpo de mulher, realizando as nossas provas e aprendizagens, não tendo assim Deus criado uns seres melhores ou preferíveis a outros, demonstrando desta forma a justiça da igualdade na natureza no seu mais alto esplendor.
Biologicamente existem algumas diferenças, é verdade que sim, e estas acabam por influenciar o espírito que dispõe dessa máquina maravilhosa durante a existência física, mas não só não nos coloca em patamares diferentes durante a vida no corpo de carne (tanto em tarefas, capacidades, direitos e responsabilidades), como também é certo que todos passamos pelas diferentes experiências ao longo das sucessivas existências reencarnatórias.
Mas a nossa sociedade ainda com tantas influências da organização patriarcal, teima em manter resquícios do que vivemos durante séculos e séculos, onde foi útil (sempre com a finalidade de manter o poder), questionar se as mulheres teriam alma, assim como os escravos, os povos que proferiam uma religião diferente, quem tinha uma limitação física ou mental, etc.
Não tendo direito a uma alma, a supremacia era evidente e imediata, como aliás fazemos ainda hoje relativamente aos animais, ao olharmos para eles com uma perspetiva ilusória de que a nossa alma detém superioridade relativamente ao princípio espiritual que anima os animais, aparentemente sem entendermos que estamos todos no mesmo processo evolutivo e que um dia (talvez daqui a milhões de anos, mas garantidamente um dia) chegarão também eles ao patamar hominal da evolução.
“607-a. A alma teria sido, portanto, o princípio inteligente dos seres inferiores da criação?
Já dissemos que tudo se encadeia na natureza e tende para a unidade. É nesses seres, que estais longe de conhecer, que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se prepara para a vida, como dissemos.
É, de certa maneira, um trabalho preparatório como o da germinação, a seguir ao qual o princípio inteligente passa por uma transformação e se torna Espírito. É então que começa para ele o período de humanização, e com este a consciência do seu futuro, a distinção do bem e do mal e a responsabilidade dos seus actos, como depois do período da infância vem o da adolescência, depois a juventude, e por fim, a idade madura.
Nada há nessa origem que deva diminuir o ser humano. Os grandes génios sentem-se diminuídos por terem sido fetos informes no ventre materno? Se alguma coisa pode diminuí-los é a sua distância relativamente a Deus e a sua impotência para sondar a profundeza dos seus desígnios e a sabedoria das leis que regulam a harmonia do Universo.
Reconhecei a grandeza de Deus nessa admirável harmonia que faz com que tudo seja solidário na natureza. Crer que Deus pudesse ter feito qualquer coisa sem objectivo e criar seres inteligentes sem futuro, seria blasfemar contra a sua bondade, que se estende sobre todas as suas criaturas.” (Kardec 1860/ 2018, 193).
Mas ainda é habitual ver-se animais presos a uma corrente toda a vida para servirem de alarme de baixo custo, à chuva, ao frio, ao calor. Ainda é habitual utilizar animais em espectáculos, alguns com dor e morte associados, para deleite de alguns humanos.
Noutro âmbito, mas ainda dentro do mesmo raciocínio, nos dias de hoje muitos ainda olham com desdém para a homossexualidade, quando já em 1866 Allan Kardec abordava a explicação para essa temática exactamente no mesmo artigo e de uma forma sublime, demonstrando como é natural (como aliás não podia deixar de ser) a existência desta realidade:
“Sofrendo o Espírito encarnado a influência do organismo, seu carácter se modifica conforme as circunstâncias e se dobra às necessidades e exigências que lhe impõe esse mesmo organismo. Esta influência não se apaga imediatamente após a destruição do envoltório material, assim como não perde instantaneamente os gostos e hábitos terrenos. Depois, pode acontecer que o Espírito percorra uma série de existências no mesmo sexo, o que faz que, durante muito tempo, possa conservar, no estado de Espírito, o carácter de homem ou de mulher, cuja marca nele ficou impressa. Somente quando chegado a um certo grau de adiantamento e de desmaterialização é que a influência da matéria se apaga completamente e, com ela, o carácter dos sexos. Os que se nos apresentam como homens ou como mulheres, é para nos lembrar a existência em que os conhecemos.
Se essa influência se repercute da vida corporal à vida espiritual, o mesmo se dá quando o Espírito passa da vida espiritual à vida corporal. Numa nova encarnação ele trará o carácter e as inclinações que tinha como Espírito; se for avançado, será um homem avançado; se for atrasado, será um homem atrasado. Mudando de sexo, sob essa impressão e em sua nova encarnação, poderá conservar os gostos, as inclinações e o carácter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias aparentes que se notam no carácter de certos homens e de certas mulheres.” (Kardec 1866, 17)
A Doutrina Espírita veio abalar ao mesmo tempo as fundações do materialismo e de muitas ideias defendidas por instituições religiosas seculares, dando a conhecer a grandiosidade das leis da natureza, mostrando que somos todos verdadeiramente iguais e que o amor, tolerância e fraternidade são os faróis por onde nos devemos reger.
A propósito de todos estes temas abordados por Allan Kardec, lembrei-me de abordar nas linhas deste artigo a velocidade lenta com que a evolução se processa e ainda, como o estudo desse texto abre também as portas a outras reflexões profundas sobre a mensagem contida na chamada Obra Básica do Espiritismo:
Ao vivenciarmos a velocidade alucinante com que a tecnologia fica desactualizada e é substituída cada vez mais rapidamente por soluções mais robustas, rápidas e complexas, temos a ilusão de que toda a evolução é rápida (e é aparentemente verdade, pelo menos no que diz respeito a alguns nichos, como temos oportunidade de verificar na tecnologia), mas a evolução intelectual e moral do espírito não tem acompanhado essa corrida materialista desenfreada.
Sim, é um facto estarmos cada vez mais avançados nos conhecimentos de medicina, biologia e outras ciências, mas continuamos com muita bagagem primitiva no nosso íntimo, assim, será por certo muito precipitado o argumento de que a Obra Básica da Doutrina Espírita está desactualizada!
Como pode estar desactualizada se nós ainda não a entendemos na sua plenitude e não a colocamos em prática no dia-a-dia?
Não estou a sugerir sermos velhos do Restelo** nem a defender que não se faça investigação no âmbito espírita, até porque faz muita falta investigação credível a gerar mais e mais evidências, no sentido de confirmar o que o Espiritismo defende desde 1857, submetendo-as para análise do paradigma científico vigente.***
Talvez tenhamos muito a fazer nesse âmbito, no entanto, estava a referir-me mais concretamente ao estudo metódico do Espiritismo, instigando os participantes à permanente isenção e ao pensamento crítico, sem laivos religiosos, passando tudo pelo crivo da razão.
Quanto mais se estuda a Obra Básica, mais percebemos a imensidão de conhecimentos abordados, o quão actuais ainda estão os temas e o quanto nos falta alicerçar, interiorizar e divulgar, antes destas obras de Allan Kardec ficarem porventura desactualizadas.
Se nos autoanalisarmos, não estaremos a desempenhar o papel de um estudante do ensino básico, a reclamar porque os ensinamentos abordados na soma, subtracção, multiplicação e divisão são muito desactualizados, querendo seguir de imediato para o ensino universitário?
Peço perdão pela analogia disparatada, mas se nos imaginarmos nessa situação sem nexo, qualquer ficção apresentada como sendo cálculo avançado corre o risco de ser recebida como algo maravilhoso, não deixando, no entanto, de ser ficção.
Não nos esqueçamos que a Doutrina Espírita é assente em raciocínio lógico, validado, e que entre outras coisas reúne a universalidade dos conhecimentos recebidos. Temos a responsabilidade de evitar tanto quanto possível o recuo evolutivo.****
A maioria da população do planeta Terra ainda não sabe dos esclarecimentos e consolos trazidos pelo Espiritismo, e assim, na minha opinião, este é o papel dos espíritas:
● Estudar profundamente a Obra Básica;
● Divulgar a Doutrina Espírita (por pensamentos, palavras e acções);
● E, consequentemente, esclarecer e consolar quem procura respostas.
Em suma, se lermos o artigo “As mulheres têm alma?” sem nos determos, nem aprofundarmos o conteúdo riquíssimo - actual e que abre as portas a outras reflexões -, corremos o risco de nos autoanalisarmos positivamente de forma ilusória, enquanto civilização, achando que neste momento estamos muito mais evoluídos do que de facto estamos.
No tempo de Jesus tínhamos várias facções em disputas religiosas. Tantos anos depois, evoluímos em conhecimentos científicos, mudaram as facções, mas mantemos as disputas, religiosas em tantos locais e outras igualmente difíceis de entender, como as clubísticas, de nacionalidade, cor da pele, para além de continuarmos a alimentar guerras, desde as mais mediáticas, às outras do dia-a-dia, como no trabalho, no seio familiar, com os vizinhos, no trânsito e em tantas outras realidades.
No artigo que serviu de base a este texto, Allan Kardec chama a atenção dos leitores com um título talvez inesperado para demonstrar a justiça de Deus e a igualdade entre os géneros, mas como percebemos facilmente, esse tema é só a ponta do iceberg.
Em determinado local e contexto, quem está em maioria, (ou se não em maioria, pelo menos com alguma forma de poder), olha para o diferente e/ou para aquilo que não entende como uma ameaça, algo que não deveria existir, colocando essa realidade numa posição submissa, controlável e relativamente à qual tem a tendência de impor as suas próprias ideias.
Fazendo o exercício de nos imaginarmos expectadores, teremos por certo a tentação de perguntar: O ser humano tem alma?
Claro que nem tudo é mau e a resposta a essa pergunta é um óbvio “sim”. Com estas linhas limitei-me a chamar a atenção para alguns aspectos da nossa existência colectiva no planeta em que habitamos e que merecem a nossa reflexão, isto porque temos nas nossas mãos o “poder” de mudar o mundo, bastando para tal que cada um comece por mudar-se a si próprio.
* Cf. O Livro dos Espíritos, Pergunta 200 e seguintes. “Os Espíritos encarnam como homens ou como mulheres, porque não têm sexo. Como devem progredir em tudo, cada sexo, assim como cada posição social lhes oferecem provas, deveres especiais e oportunidades para adquirirem experiência. Quem fosse sempre homem só saberia o que sabem os homens.” (Comentário de Allan Kardec à Pergunta 202).
** A expressão "Velho do Restelo" é uma referência a um personagem do poema épico "Os Lusíadas", escrito por Luís de Camões, considerado o maior poeta da língua portuguesa. O "Velho do Restelo" simboliza uma figura pessimista e conservadora, que expressa dúvidas e críticas em relação às grandes navegações e descobrimentos portugueses. Nesse contexto, a expressão é utilizada para representar alguém que resiste à mudanças e ao progresso.
*** Quantas associações espíritas têm um arquivo detalhado com as evidências ocorridas nas suas reuniões mediúnicas? Das associações que o fazem, as evidências foram recolhidas e são descritas de forma a serem consideradas válidas em estudos futuros?
**** "Recuo evolutivo" conforme utilizado neste texto, não deve ser interpretado como uma contradição à Lei do Progresso, que afirma que a evolução do espírito é lenta, mas contínua, e nunca retrocede. Aqui, "recuo evolutivo" refere-se a períodos em que, embora a essência evolutiva do espírito permaneça intacta, há uma aparente regressão na manifestação de comportamentos ou atitudes evoluídas devido a circunstâncias específicas ou escolhas pessoais. É importante frisar que tais momentos não significam uma perda do progresso já alcançado, mas representam momentos de estagnação ou dificuldade no caminho contínuo da evolução.
Artigo publicado originalmente na Revista Espírita N.13 - Out/Nov/Dez 2023
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